por João Victor Maciel de Almeida Aquino*
A linguagem é formada por uma série de movimentos e informações dividas entre cérebro, cordas vocais, pulmões, lábios e língua. A cada movimento emitimos uma vogal, uma sílaba e uma infinidade de palavras. Não sabemos ao certo quando os idiomas surgiram ou como passamos de uma comunicação básica e primitiva para um conjunto complexo e organizado que denominamos língua. Nesse mar de incertezas sabemos apenas que a língua é viva, dinâmica bem como a expressão da cultura, de um tempo e de um povo, logo acompanhando as mudanças e as reinvenções dos mesmos.
Nós, como praticantes de uma religião que se originou há milhares de anos no território que hoje compreende a Grécia, temos uma relação especial com a língua grega. Mesmo quando reformulamos alguma prática religiosa e a adaptamos para um novo contexto temporal e geográfico, a relação com as suas origens continua intrínseca.
Atualmente o grego é falado por cerca de 15 milhões de indivíduos ao redor do mundo. É a língua oficial tanto da Grécia quanto de Chipre. A maior concentração de falantes encontra-se nestes dois países, no entanto podemos encontrar pequenas populações falantes em vários países do Mediterrâneo (como sul da Itália, Israel e Egito) e no entorno do Mar Negro (como na Ucrânia, Rússia, Geórgia e Armênia). Além de aspectos geográficos, o grego possui uma identidade particular como língua erudita, sendo empregado – desde o império romano - em várias áreas do conhecimento como a matemática e a física, assim como nos campos antropológico, histórico e cultural.
A língua grega evoluiu tanto na escrita quanto na oralidade para chegar ao estágio do que hoje conhecemos como grego moderno. Como no contexto de diferenças culturais e espaciais do que hoje forma a Hélade pode surgir uma língua cheia de multiformidades como o grego? Chegar a uma resposta definitiva a respeito disso é uma tarefa praticamente impossível. O que nós podemos fazer é tentar compreender as várias mudanças do idioma e ir mais além, fazendo uma reflexão a respeito da influência destas sucessivas mudanças na prática religiosa e do modo como encaramos a fé nos deuses.
Alguns estudiosos do campo linguístico fazem uma relação da evolução de um idioma com uma ampulheta, pois assim como a areia que passa de ambula para outra ao realizar a contagem, quando a ampulheta é virada, a areia realiza novamente a contagem do tempo, mas isso sem mudar a sua essência (é sempre a mesma areia). A língua muda, mas nunca sem perder o seu papel como protagonista das relações humanas. No contexto grego, a mudança e a expansão do idioma assim como a difusão e unificação só foram possíveis devido a uma sucessão de fatos históricos. A data mais remota da presença de falantes do idioma data aproximadamente do ano 2000 AEC. Por ter uma origem remota é difícil definir os limiares do surgimento da língua grega. Existem atualmente muitas possibilidades em discussão. A mais aceita entre os estudiosos é a de que em tempo mais antigos – por volta de 2200 AEC – existia um dialeto único, o grego comum, que por algum motivo fragmentou-se em dialetos diferentes. Já outros dizem que tal idioma nunca existiu.
Há décadas os estudiosos têm como aliado de sua caça à origem do idioma o sistema de escrita conhecida como linear B. Este, por sua vez, era empregado pelos micênicos na idade do bronze e utilizava – de forma adaptada – a escrita silábica dos minoicos de Creta. A linear B, mesmo que praticamente decifrada ainda traz consigo uma série de interrogações.
Durante o período conhecido como Idade das Trevas (1100 – 750 AEC), com a invasão dos Dórios, a estrutura urbana, comercial e social que havia sido estabilizada ruiu. A escrita foi praticamente inutilizada durante três séculos de domínio.
Andando mais um pouco no tempo temos os primeiros contatos dos gregos com os fenícios. A Fenícia há um tempo já vinha se tornando uma potência comercial na área do mediterrâneo, tendo entrepostos comerciais que vinham deste a Palestina até a Península Ibérica. A princípio algumas póleis adotaram os sinais desenvolvidos pelos fenícios. Em questão de anos o seu uso se expandiu as outras póleis, cada qual com o seu conjunto próprio de sinais. O alfabeto da cidade de Mileto foi adotado por Atenas e em seguida por outras cidades até sua total unificação. Mesmo tendo uma escrita praticamente unificada a diferença na oralidade ainda era notável. Existia no âmbito geográfico uma diferença social entre os vários dialetos existentes. O ático, por exemplo, era um dialeto com mais prestigio. Os intelectuais, escritores, dramaturgos e comerciantes – mesmo tendo um dialeto materno diferente – o utilizavam, transformando a sua produção assim como possibilitando uma troca de experiências e sabres entre as póleis. Essa difusão e aceitabilidade contribuíram para que fosse o ático a base para o idioma comum, o koiné,
Alguns séculos depois durante a campanha militar de Alexandre III da Macedônia surgiu o koiné que também é conhecido como “dialeto comum”. Este por sua vez se difundiu entre os exércitos de Alexandre e logo se popularizou em seus domínios. Muitos intelectuais viam no idioma comum uma perda tradicional das singularidades que o ático possuía, isso em termos práticos não travou as modificações pelas quais o idioma veio a passar. Alexandre possuía um respeito pelas várias culturas que faziam parte do seu império. Levava consigo uma série de geógrafos, naturalistas e historiadores, como Calístenes de Olinto, o cronista das suas expedições. A ampliação da esfera de influência grega foi significativa para que a região se desenvolvesse e que fosse iniciado um período de intercâmbios e transformações dentro do campo idiomático do mesmo modo que também ocorreu nas produções artísticas e na organização civil, culminando em vários embates e revoltas de cunho social em Esparta, Tessália e Beócia.
Nos anos que se decorreram da ascensão de Alexandre à queda de Roma foram muitos os motivos que transformaram profundamente a história da Grécia e do hellenismos. Dentre elas a mais marcante foi a adoção, por Constantino I, do cristianismo como religião oficial do estado romano e seus territórios, incluindo a Grécia. No final do século IV, a maioria da população romana era de cristãos, principalmente os membros da classe política. Os imperadores e autoridades ordenaram o fechamento dos templos e oráculos, proibiram os festivais e qualquer manifestação pública de cunho religioso. Sobrevivendo nas áreas rurais, a prática foi sendo agregada a ritos muitas vezes cristianizados. Muitos dos devotos, por pressão social, medo de perseguição ou por simpatia pela nova religião, acabavam por abandonar a religião politeísta de seus avós e antecessores, o que consequentemente levou a religião a uma transformação nos modos de organização, espaço e significados.
Em ocasião dos sucessivos desafios à manutenção das tradições religiosas, a linguagem se revela uma grande ferramenta da preservação, tendo na tradição um esteio, passando de geração em geração seus conhecimentos a respeito dos deuses. Ao fazer uma análise compreendemos de melhor forma o papel do idioma, já que tais fontes orais permitem, de uma forma mais orgânica, o entendimento da dinâmica, dos afazeres, normas e valores que norteavam a população da Hélade que a essa altura já era totalmente diferente da de dois séculos atrás.
Mesmo cristã, parte da população continuava frequentando os bosques e realizando rituais em honra às divindades ancestrais. Uma prova disso são os textos clericais da idade média que nos elucidam a cerca das dificuldades da evangelização de povos pagãos. Segundo Mario Jorge da Motta Bastos, em Cultura clerical e tradições folclóricas: estratégias de evangelização e hegemonia eclesiástica na Alta Idade Média,
na medida em que os vários grupos [...] assentados na Europa converteram-se ao cristianismo, não houve um processo de abandono integral das suas culturas compatíveis com a perda de suas religiões; certas crenças religiosas novas foram adotadas em detrimento de outras, preservando-se o ‘contorno’ cultural [...] no qual inseriu-se o cristianismo.
Outra forma de culto que resistiu a catequização católica foram os cultos domésticos, que na privacidade do lar, eram honrados.
Apesar de uma série de contratempos a religião perdurou e atravessou séculos de perseguições e estigmatização. Muitos o davam por extinto e a lembrança do último imperador abertamente helenista já não era nada mais que um vulto na história. Em meio a ruínas dos templos brilhantes de outrora surge o Reconstrucionismo Helênico com o objetivo de reviver – mas não de forma nostálgica – as tradições dos antigos gregos.
O Hellenismos está em constante mudança e redescoberta. A cada novo estudo feito e a cada progresso realizado a religião se torna cada vez mais viva. Nós por exemplo nos servimos tanto de autores e produções clássicas quanto de contemporâneas, moldamos as antigas tradições para os nossos dias e nos encontramos em um constante estado de aprendizado. Mircea Eliade afirma que uma das características dos ritos é que eles são uma repetição de normas e gestos primordiais, sendo assim, eles eliminam o tempo profano e transmitem às pessoas um tempo sagrado, que se repete não por uma ideia de sucessão, mas para tornar o momento sagrado sempre presente e realizável (Eliade, 1998). Ou seja, o culto aos deuses transcende o tempo, as mudanças e a sociedade.
Em cada momento da história os desafios do culto são diferentes. Hoje, os desafios envolvem a formação dos novos membros e de uma organização clerical completa. Ainda devemos levar em consideração o crescimento do culto aos deuses no mundo, saindo da Grécia e se espalhando por outros lugares. No Brasil por exemplo há um núcleo considerável e presente em diversas cidades e regiões. Muitas práticas e festivais foram reformuladas em certos pontos e adaptadas para atender a sua finalidade. A adequação se mostra ainda mais importante quando se tem em vista o fato de que muito dos praticantes se encontram isolados geograficamente um do outro e realizam os ritos de forma individual.
Talvez o motivo pelo qual a crença nos deuses tenha resistido e que venha ganhando cada vez mais adeptos seja por um fator simples: Os deuses estão em todos os lugares. Não de forma onisciente, onipotente e onipresente como em outras religiões, mas sim pelo fato de a prática estar presente em nossas vidas em diversos momentos. Diferente das religiões judaico-cristãs, a visão dos deuses não é baseada na subserviência, mas sim em um respeito no qual os deuses estão ao nosso lado, como amigos, mestres e companheiros de diversas ocasiões. Dentro do contexto cultual e social uma religião é delineada pelo modo como se conecta ao divino e o modo como isso afeta as relações humanas, sendo a relação humanos-deuses o motor de transformações e a garantia de sua perpetuação.
Referências
FEITOSA, João. Rito e Cura no culto de Asclépio no Final do Período Clássico.
ADRADOS, Francisco. A History of Greek Language.
SILVA, Acildo. Memória, Tradição Oral e a Afirmação da Identidade Étnica.
GUIMARÃES, Vitor. O Clero Cristão e as Práticas Pagãs no Reino Visigodo.
BOVO, Elisabetta (Coord.). Grande História Universal, Época Helenística. Barcelona: Folio, 2001.
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João Victor Maciel mora em Campo Grande e faz parte do programa de Educação Básica para Membros do RHB. É estudante de direito e participa das atividades do Reconstrucionismo Helênico no Brasil desde 2014.